sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Carta entre amigos - Carta do meu querido amigo Gabriel


"Não entendo
a tristeza como
ausência de
felicidade. Acho
que elas coexistem.
somos felizes e
tristes. Felizes
porque tentamos
entender a nossa
missão. Tristes
porque assim
tem de ser.”



Querido irmão padre Fábio

Tenho saudade dos meus dois irmãos que estão com Deus. Meu irmão Sávio morreu aos 21 anos. Jovem, belo, apaixonado pela vida. Um acidente de carro roubou-lhe a possibilidade de prosseguir em sua travessia.
Vi meu irmão morrendo. Estava ao seu lado. Ele dirigia e contava histórias de um amanhã que não chegou. Cantamos sozinhos naquela noite longa. Nós dois. Eu tinha apenas 15 anos e, por milagre, sobrevivi. Vi seu soluço inconsciente, seu suspiro final. Tentei abraçá-lo, enquanto vozes se aproximavam. Meus braços não se moviam. A dor física era pequena diante da possibilidade da separação. Olhei-o com ternura. Separamo-nos. Meu irmão partia sem ter o direito de se despedir. Sem dizer o que gostaria que fizéssemos por ele. Apenas partiu. Minha mãe vestiu-se de preto por algum tempo. As sombras tomavam seu semblante, e gritos de dor eram entremeados por dias de silêncio. Meu pai era só silêncio. Em suas orações, lágrimas solitárias pediam a Deus que acolhesse o fruto do seu amor. A morte nunca tinha estado tão perto de mim. Acho que não pensava muito nela. Nos dias em que fiquei engessado, tentando recompor partes quebradas do meu corpo, quebrei-me em perguntas sem respostas. Por que o caminhoneiro dormira? Por que ele partira e eu ficara? Porque apenas o meu banco quebrara, jogando-me um pouco para trás, e o dele não, se ele era maior do que eu?
Antes do acidente com o Sávio, convivi com a morte quando meu avô Gabriel partiu. Foi pouco tempo antes. Sofri também, mas compreendi que seu sofrimento físico tinha chegado ao fim. Assustei-me quando o vi num caixão. Lembrei-me dos dias em que eu, criança, dava aulas para ele e para minha avó num quadro-negro. Chorei a certeza de não mais ouvir suas anedotas singelas e suas histórias de uma Síria do passado. Fazia poesia com simplicidade, meu avô Gabriel.

Mas a morte do Sávio... Sou o filho caçula. Dormíamos no mesmo quarto, e ele fazia-se de forte, investigando todos os lugares onde poderia haver algum perigo capaz de nos atingir. Sorria quando, depois de certo suspense, comunicava que nem debaixo da cama, nem atrás das cortinas, havia monstros ou figuras semelhantes. Podíamos dormir em paz. Era carinhoso. Irreverente. E gostava de viver.

Meu irmão Júnior também partiu. Sua alegria pura, sua ingenuidade de uma infância sem fim, presentes da síndrome de Down, fazem falta. Meu pai dizia da dolorosa surpresa quando soube que meu irmão era diferente das outras crianças. Minha mãe também estranhou sua chegada. Mas isso foi por pouco tempo. Júnior tornou-se o centro das atenções. Cantarolava sozinho e sorria sem economia. Beijava, abraçava e vez ou outra chorava. Tentávamos entender onde era a dor. Não era fácil. Sua melhor comunicação vinha da alegria apenas. Na cadeira de balanço, meu pai brincava com ele. Minha mãe dava-lhe na boca o alimento que nutria seu corpo e sua alma. Sua partida deixou um vazio imenso. Trinta e poucos anos e nada mais. Brincou de dia. Brincou no hospital e se foi... brincando.

Irmãos que partiram prematuramente. Irmãos que continuam presentes na capacidade que tenho de pensar neles.

Quando nos conhecemos, padre Fábio, eu não imaginava que nossas almas tivessem raízes comuns. Fomos plantados em solos fertilizados com sofrimento e esperança. Sua poesia, misturada a alguma tristeza, torna seus dizeres mais profundos. Seu jeito de falar, sua forma de estar presente, sua capacidade de ouvir a dor, tudo isso foi fazendo com que nossa travessia ganhasse um novo sentido. Você é meu irmão, sim, padre. Não em substituição àqueles que partiram, mas em presença de Amor. Com você, sinto-me livre para errar com minhas verdades provisórias. Com você, não tenho pressa. Gosto de ouvir suas canções e suas histórias. Admiro seu jeito de falar de Deus, sua estética religiosa, seu talento humano. Faz algum tempo que partilhamos projetos e dúvidas, e tem sido tão bom. A felicidade só deixa de ser utopia quando nos completamos com a inteligência e o afeto do outro.

Não entendo a tristeza como ausência de felicidade. Acho que elas coexistem. Somos felizes e tristes. Felizes porque tentamos entender a nossa missão. Tristes porque assim tem de ser. A tristeza nos empresta respeito ao outro e percepção mais aguçada da dor. Talvez tristeza seja ausência de alegria, de riso fácil, não de felicidade.

Hoje é véspera de um dia qualquer e estou triste. Acordei com saudade do meu pai. Tantas coisas aconteceram em minha vida depois que ele se foi. Meu pai. Quando escrevi a sua história como um presente em seu aniversário de 80 anos, não tive dúvida quanto ao título: Memórias de um homem bom. Sua simplicidade falava-me de um Deus que mora na ternura e que acolhe. Sua sabedoria falava-me de um Deus que não julga, mas compreende; que não afasta, mas ama. Seu olhar permitia-me lançar-me em aventuras, ora corretas, ora necessárias à satisfação da minha curiosidade. Caí algumas vezes. Mas eu sabia que ele estava ali para qualquer arranhão mais doloroso. Ele não está mais aqui comigo. Está em mim, porque trago muito do que ele deixou. Mas ele não me abraça. Não sorri para mim. Não me diz coisas que cicatrizem as minhas feridas. Tenho saudade do meu pai, padre. Do seu colo, das suas cantigas amadoras, das histórias recontadas de uma vida marcada pela dor. Meu pai sofreu muito. E sem lamúrias. Minha fortaleza partiu para junto de Deus. Eu entendo que estamos aqui de passagem. Tenho fé de que há outro porvir, um lindo céu que nos aguarda, mas isso não retira de mim a saudade que dói.

Meu pai falava de mim com orgulho, do seu filho escritor. E eu brincava com ele, dizendo que não havia idade para ingressar no mundo das letras transformadas em história ou em dizeres poéticos. Cora Coralina estreou na literatura aos 76 anos de idade e fez da vida e da morte uma poesia:

Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos.

Cora viveu de felicidade e de tristeza. Teve uma infância que não deixou saudades. Ela escreveu isso muitas vezes. 

Quando nasci, meu velho pai agonizava,
logo após morria.
Cresci sem pai,
secundária na turma das irmãs.

Eu era triste, nervosa e feia.
Amarela, de rosto empalamado.
De pernas moles, caindo à toa.
Os que assim me viam – diziam:
“Essa menina é o retrato vivo
do velho pai doente”.

Falava dos apelidos debochados, do sonho frustrado da mãe de ter um filho homem, dos trambolhões da escada, galo na testa, pernas moles. Falava de uma dor doída de uma infância que não viu sorriso. A dor poderia tê-la paralisado. Mas o cenário dos sentimentos viu outra apresentação. Cora Coralina rezou a saga da mulher vitoriosa:


Cora Coralina

Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado

e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.

Tudo de pedra.

Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras

e plantando flores.

Entre pedras que me esmagavam
levantei a pedra rude

dos meus versos.


Cora Coralina não buscou o lado mais fácil da vida, mas conseguiu compreender que, mesmo sem facilidade alguma, era possível encontrar a tal poesia no cotidiano da dor. Não há poesia sem dor. A vida nasce da dor. O amor mais amado surge depois de uma dor prolongada. Amor de mãe!

Não há amor sem conquista. Os amantes precisam ao menos se deixar conquistar. As artimanhas da sedução têm o encanto próprio de quem tenta tocar no ponto frágil para depois fortalecerem- se juntos. Amores doídos, os não correspondidos. Histórias de ausências, de lágrimas, de quem deu e não recebeu. Não deveria ser gratuito o sentimento daquele que ama? Não é gratuita a chuva que cai abundantemente? A vida, toda ela é uma graça. Mas os homens não são deuses. E poucos são aqueles que conseguem dar sem exigir, sem projetar. “Quebrando pedras e plantando flores.” Quando penso nos sofrimentos de meu pai e na sua leveza, fico me perguntando se uma coisa tem relação com a outra. Será que as pessoas que mais sofrem são as que mais amadurecem? Será que a dor tem o poder de dar majestade ao amor?

Na minha infância, padre Fábio, experimentei a carência que todo menino de certa forma experimenta. Meu pai ficou doente algumas vezes, e eu esperava sua volta depois de longas sessões de quimioterapia. Sofria calado. A ausência poderia chegar a qualquer momento. Eu rezava do meu jeito. E meu pai ficou curado. O tempo passou, e, sem doença alguma, ele se foi. No dia em que meu pai morreu, tínhamos ido juntos a um casamento. Ele sorria com certa tristeza e, com delicadeza, se preocupava em não atrapalhar a festa com o incômodo da sua dor. Era apaixonado por minha mãe e sabia quanto ela gostava de festas. Sacrifícios por amor trazem menos dor. Fomos juntos para casa, depois juntos para o hospital. Depois, separados. Beijei-o com ternura e fiquei imaginando o que ainda ficara por ser dito nesses anos em que falamos muito ou quase nada.

Pergunto muitas vezes a Deus: por que tanto sofrimento se um dia estaremos juntos, plenos de amor?

Chorei a ausência das reações humanas daquele corpo sem vida. Chorei a orfandade incômoda, o adeus forçado, a separação. Choro hoje a impossibilidade dos afetos. É abstrata a sua presença. É memória e esperança. Apenas isso. Meu pai amado não passa mais os natais comigo, nem meus aniversários.

Em uma triste carta, uma mulher contou-me sua história de dor. Ela perdeu um filho com alguns meses de vida, engasgado com mingau. Perdeu um sobrinho queimado e um neto afogado. Na carta, ela queria que eu explicasse por que essa sina de tantas crianças mortas em sua família. Queria uma resposta. Queria saber se Deus, por algum motivo, tinha decidido castigá-la. Li algumas vezes aquele bilhete ensanguentado de perdas. Tentei formular alguns dizeres. Falar apenas que é preciso ter fé parecia não diminuir a angústia de uma vida de ausências arbitrárias. Ela naturalmente não tinha escolhido. Não houve decisão voluntária de se afastar das sementes que não chegaram a germinar. Por que com ela? E tantas vezes seguidas? Fiquei imaginando as reações. O desespero. O choro diante da criança. A culpa. Como reconstruir? “Quebrando pedras e plantando flores”? Como convencê-la disso?

Hannah Arendt é uma das maiores filósofas da história do pensamento.

Nascida em Hannover em 1906, teve uma infância acalentada com todo o carinho e estímulo cultural necessários a uma vida de sucessos. Os pais eram judeus assimilados e apaixonados pela liberdade que o respeito ao outro proporcionava. Leu em livros e aprendeu com exemplos o sentido de uma vida correta. Brincou de ser independente, de dizer o que pensava.

Diferentemente de Cora Coralina, a infância de Hannah prenunciava uma vida sem grandes traumas. Embora tivesse perdido o pai muito cedo, a mãe a educou seguindo os melhores preceitos do amor e dos limites corretos, para que a responsabilidade pelo outro, a autodisciplina e a harmonia interna e externa não fossem abandonadas.

Sua vida, entretanto, começa a mudar com a Primeira Guerra Mundial, de 1914. De uma infância segura e feliz a uma adolescência frágil. A mãe casou-se com outro homem, e Hannah tornou-se triste e rebelde. Em 1924 o filósofo Martin Heidegger aceitou orientar sua tese sobre o conceito de amor em Santo Agostinho. Hannah apaixonou-se perdidamente por Heidegger. Ela tinha 18 anos. Ele tinha 35, era casado e pai de dois filhos. Foram amantes por algum tempo, até que, depois de tanto sofrer de paixão, ela resolveu pôr fim à história e se casar com outro homem. Sem conseguir separar o amor dos embates filosóficos, Hannah passou a ser orientada por outro pensador, amigo de Heidegger, Karl Jasper. Esse professor tornou-se o exemplo de integridade moral e intelectual para a jovem Hannah. Depois da defesa do doutoramento, a alegria de ingressar na atividade docente foi subtraída pela ascensão dos nazistas ao poder. Sua grande frustração foi ver Heidegger, o homem que ela amou e admirou, apoiando os nazistas. Hannah foi presa, mas conseguiu fugir ilegalmente para Paris, onde conheceu Walter Benjamin e outros judeus-alemães refugiados do novo regime. Sua felicidade na cidade das luzes durou pouco. Os alemães invadiram Paris, e, com Walter Benjamin e alguns amigos, Hannah partiu em direção à Espanha. A fronteira estava fechada. Sem conseguir resistir ao medo de ser pego pelos nazistas, Benjamin suicidou-se. Hannah assistiu à partida de todos aqueles que admirava. A solidão e a dor não a destruíram. Da Espanha, Hannah partiu para Lisboa e em 1941 chegou aos Estados Unidos.

Hannah Arendt não falava inglês, o que dificultou seu ingresso intelectual na nova pátria. Sentiu-se discriminada, mas prosseguiu. Lutou pela vida e pela possibilidade de defender seus irmãos semitas e tantos outros irmãos privados da liberdade ou da construção da própria história apenas por terem nascido filhos de um povo perseguido. Em 1951, Hannah Arendt tornou-se cidadã americana. Em pouco tempo a refugiada se transformou na famosa conferencista que encantava os ouvintes em Harvard, Princeton e Chicago. Voltou à Alemanha e a Paris respeitada pelos conceitos que disseminava. E o mais fascinante em sua história é que, mesmo depois de tanto sofrimento, seu grande legado foi a ideia de que a solução para a humanidade estava no amor mundi, ou seja, no amor pelo mundo. Em sua obra A condição humana, publicada em 1958, Hannah Arendt faz um retrospecto da história do pensamento desde os gregos e romanos, tentando explicar a presença do homem no mundo e seu percurso em busca da liberdade. A liberdade que só pode ser proporcionada por um amor capaz de construir e respeitar as diferenças. “Quebrando pedras e plantando flores” – essa foi e é a marca de Hannah Arendt.

Pensei em dizer alguma coisa parecida à mulher sofrida que buscava razões para as suas perdas, para as suas pedras. Temi dar uma resposta pronta, fácil, para uma vida tão dura, tão difícil.

Lembrei-me de um amigo querido, que, nos momentos finais da vida terrena, em um quarto de hospital, perguntou-me sobre o fim. Tentei responder como alguns filósofos explicavam a morte, e ele, inquieto, queria saber o que eu pensava do fim. É mais fácil dizer o que os outros pensam do que dizer o que a gente sente. Era um amigo que partia. Um amigo amado. Tinha sido meu professor de história e me ensinado a conhecer um pouco da riqueza do homem no mundo. Respondi que não sabia. Que o mistério da partida não tinha sido revelado a homem nenhum. Lembrei-lhe que, nas aulas que magistralmente conduzia, ele nos falava das muitas religiões, cada uma com explicações tão diversas para o adeus do corpo. Ele apenas me olhava, esperando que algo mais fosse dito. Não se tratava mais de uma pausa. Tratava-se do fim. Pausas existem aos montes em nossa vida. Como as pálpebras que fazem toda a diferença porque descansam a visão. Ele sabia que as pálpebras em pouco tempo descansariam para sempre e queria uma resposta. O que eu disse naquele janeiro ensolarado em um quarto de hospital foi que acreditava em Deus. E ele concordou com a cabeça, dizendo que também acreditava. E eu me enchi de coragem e disse-lhe que ficasse tranquilo. Se Deus de fato existisse, não nos trataria como um brinquedinho que, quando velho ou estragado, se joga fora para dar lugar a outro. Fomos feitos para muito mais que isso. Ele sorriu. Naquela espera do fim, ele sorriu. De fato, Deus não nos fez para o nada, mas para a plenitude. E a plenitude é complexa demais para que nossa razão saiba explicá-la. Meu amigo ficou com as pálpebras cerradas, assim como o filho, o sobrinho e o neto da mulher que me escrevera aquela carta.

Padre Fábio, parece-me impossível não ter medo da morte. Por mais intensa e significativa que seja nossa fé, por maior que seja nossa intimidade com Deus, esse mistério incomoda profundamente. Por que não nos foi revelado em momento nenhum o que virá depois? Não seria menos doloroso? Não viveríamos com mais serenidade? Por que essa espera?

Uma vez, no enterro do filho único de uma mulher octogenária, ouvi de um padre uma metáfora. Diante da dor, ele falava do inverno na Europa. No Velho Continente, as flores morrem quando o frio chega. Os ramos secos mostram que a vida ficou no passado. Ledo engano, dizia o padre. Na primavera, elas ressurgem miraculosamente. Se não soubessem disso, talvez perdessem a esperança de ver novamente o jardim florir. A morte é a primavera da alma. O que parece ser o fim da vida é vida em transformação. Será isso, padre? Por que o mistério? Por que não sabermos antes, com detalhes, o que virá depois? Se somos eternos, por que precisamos passar pela morte? Não poderíamos ter nascido todos no céu e sermos todos felizes de uma vez? Quem decidiu assim? Deus?

Tenho saudade do meu pai. Estou ouvindo agora a linda música de A vida é bela, de Roberto Benigni. O filme é de 1997 e conta a saga do livreiro Guido, que foi levado para um campo de concentração nazista, na Itália dos anos 40. Mesmo ciente da gravidade da situação, o pai conseguiu, com muita imaginação, transformar os horrores da rotina do campo de concentração em regras de uma gincana divertida, pelo menos aos olhos do filho de 6 anos. O intuito era proteger o filho do terror e da violência que os cercavam.

O filme traz o contraste entre as pedras e as flores, entre a vontade de ser feliz e a monstruosidade da guerra, entre o desejo do amanhecer e as agruras da noite longuíssima. Com espírito leve, porém crítico, comoveu plateias ao falar de um dos maiores dramas do século 20: o Holocausto.

Benigni se disse influenciado, além de Charles Chaplin, por Leon Trótski, um dos artífices do socialismo russo. Em seu exílio no México, foragido de seu país, ameaçado de ser morto a qualquer momento, Trótski foi capaz de contemplar a mulher no jardim e escrever que, apesar de tudo, a vida é bela e digna de ser vivida.

É esse otimismo incansável que impregna a história de Guido e faz do filme, como disse seu diretor, “um hino ao fato de estarmos condenados a amar poeticamente a vida porque ela é bela”.
O pai ia para a morte e se preocupava com a vida do filho. Milhões de judeus morreram da mesma maneira, e ainda assim uma judia, Hannah Arendt, justificou os males do mundo como a ausência do amor, o amor pela pessoa humana, o amor pela natureza. Ontem, visitando uma amiga, fiquei impressionado com o amor que ela dedica a um cachorrinho que chegou à sua casa pelas mãos de uma amiga que não suportava mais as suas farras caninas. O cachorro, ainda filhote, não parava um minuto. E ela sorria com a alegria que tinha aquele animal. Hoje, vi um homem batendo em um cachorro que não lhe obedecia. Defendi o animal, que parecia se contorcer de dor. Ninguém aprende assim! Por que um cachorro teve a sorte de encontrar um lar cheio de afagos e outro é vítima de espancamentos? Por que algumas crianças nascem em lares saudáveis e outras não? Por que, meu amigo, há tanta beleza de alma confrontada com tanta feiura? Quem decidiu isso?

Não soube o que dizer à mulher que me escrevera aquela carta. Apenas ensaiei alguma poesia para aliviar o seu provável pranto e contei-lhe outras histórias tristes que talvez a consolassem. Ao final, disse-lhe para não se esquecer de que continuava viva, e todas essas crianças viviam nela e em um lindo céu, que eu não tinha o poder de descrever, até porque não se tratava de um
lugar, mas de um estado de amor.

E agora tenho de dizer isso para mim também. Meu pai vive em um estado de amor junto com tantos que simplesmente amaram. Mas não posso abraçá-lo. Talvez possa dizer alguma coisa,
acho que ele me ouve.

“Quebrando pedras e plantando flores”... A vida é bela, meu irmão amado.
Sua bênção,
Gabriel

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